Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza (CE), em 17 de novembro de 1910, e faleceu no Rio de Janeiro (RJ) em 4 de novembro de 2003. Filha de Daniel de Queiroz e de Clotilde Franklin de Queiroz, descende, pelo lado materno, da estirpe dos Alencar, parente portanto do autor ilustre de O Guarani, e, pelo lado paterno, dos Queiroz, família de raízes profundamente lançadas no Quixadá e Beberibe.
Em 1917, veio para o Rio de Janeiro, em companhia dos pais que procuravam, nessa migração, fugir dos horrores da terrível seca de 1915, que mais tarde a romancista iria aproveitar como tema de O quinze, seu livro de estréia. No Rio, a família Queiroz pouco se demorou, viajando logo a seguir para Belém do Pará, onde residiu por dois anos.
Em 1919, regressou a Fortaleza e, em 1921, matriculou-se no Colégio da Imaculada Conceição, onde fez o curso normal, diplomando-se em 1925, aos 15 anos de idade.
Estreou em 1927, com o pseudônimo de Rita de Queiroz, publicando trabalho no jornal O Ceará, de que se tornou afinal redatora efetiva. Em fins de 1930, publicou o romance O quinze, que teve inesperada e funda repercussão no Rio de em São Paulo. Com vinte anos apenas, projetava-se na vida literária do país, agitando a bandeira do romance de fundo social, profundamente realista na sua dramática exposição da luta secular de um povo contra a miséria e a seca.
O livro, editado às expensas da autora, apareceu em modesta edição de mil exemplares, impresso no Estabelecimento Gráfico Urânia, de Fortaleza. Recebeu crítica de Augusto Frederico Schmidt, Graça Aranha, Agripino Grieco e Gastão Gruls. A consagração veio com o Prêmio da Fundação Graça Aranha.
Em 1932, publicou um novo romance, intitulado João Miguel, e em 1937, retornou com Caminho de pedras. Dois anos depois, conquistou o prêmio da Sociedade Felipe de Oliveira, com o romance As três Marias. Em 1950, publicou em folhetins, na revista O Cruzeiro, o romance O galo de ouro.
Cronista emérita, publicou mais de duas mil crônicas, cuja seleta propiciou a edição dos seguintes livros: A donzela e a moura torta; 100 Crônicas escolhidas; O brasileiro perplexo e O caçador de tatu. No Rio, onde reside desde 1939, colaborou no Diário de Notícias, em O Cruzeiro e em O Jornal. Tem duas peças de teatro, Lampião, escrita em 1953, e A Beata Maria do Egito, de 1958, laureada com o prêmio de teatro do Instituto Nacional do Livro, além de O padrezinho santo, peça que escreveu para a televisão, ainda inédita em livro. No campo da literatura infantil, escreveu o livro O menino mágico, a pedido de Lúcia Benedetti. O livro surgiu, entretanto, das histórias que inventava para os netos. Dentre as suas atividades, destaca-se também a de tradutora, com cerca de quarenta volumes já vertidos para o português.
Foi membro do Conselho Federal de Cultura, desde a sua fundação, em 1967, até sua extinção, em 1989. Participou da 21ª Sessão da Assembléia Geral da ONU, em 1966, onde serviu como delegada do Brasil, trabalhando especialmente na Comissão dos Direitos do Homem. Em 1988, iniciou sua colaboração semanal no jornal O Estado de S. Paulo e no Diário de Pernambuco.
Recebeu o Prêmio Nacional de Literatura de Brasília para conjunto de obra em 1980; o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Ceará, em 1981; a Medalha Mascarenhas de Morais, em solenidade realizada no Clube Militar (1983); a Medalha Rio Branco, do Itamarati (1985); a Medalha do Mérito Militar no grau de Grande Comendador (1986); a Medalha da Inconfidência do Governo de Minas Gerais (1989); O Prêmio Luís de Camões (1993); o Prêmio Moinho Santista, na categoria de romance (1996); o Diploma de Honra ao Mérito do Rotary Clube do Rio de Janeiro (1996); o título de Doutor Honoris Causa, pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (2000). Em 2000, foi eleita para o elenco dos “20 Brasileiros empreendedores do Século XX”, em pesquisa realizada pela PPE (Personalidades Patrióticas Empreendedoras).
Discurso de Posse
Sr. Presidente da Academia Brasileira de Letras,
Sr. Ministro da Educação e Cultura,
Representando o Sr. Presidente da República,
Sr. Ministro da Justiça,
Sr. Governador do Estado do Rio de Janeiro,
Sr. Governador do meu Estado do Ceará,
Demais autoridades presentes,
Meus senhores e minhas senhoras:
Sr. Ministro da Educação e Cultura,
Representando o Sr. Presidente da República,
Sr. Ministro da Justiça,
Sr. Governador do Estado do Rio de Janeiro,
Sr. Governador do meu Estado do Ceará,
Demais autoridades presentes,
Meus senhores e minhas senhoras:
No oitão branco, batido de luar, da
velha casa de fazenda, devagarinho vai-se abrindo uma janela, a que dá
para o pequeno jardim fechado, onde há cravos, bogaris e uma laranjeira.
A menina-moça, mais menina do que moça, debruça-se ao peitoril e
procura a lua com os olhos. Logo a descobre, tão clara, daria para ler
uma carta!
A menina assesta na lua, diretamente no
disco da lua, os seus olhos que já são míopes. Suspira, mas é um suspiro
diferente, satisfeito, consolado; a menina ainda não está na idade dos
suspiros propriamente ditos, está na idade das imaginações e dos sonhos.
E, de olhos fitos na lua, silenciosamente, mal movendo os lábios, vai
murmurando para si uma reza, uma encantação – um poema? Um poema que é
reza e encantação. Vai murmurando como se rezasse para a lua, e na
verdade está rezando para a lua:
... Astro dos loucos, sol da demência
Vara, noctâmbula aparição!
Quantos, bebendo-te a refulgência
Quantos por isso, sol da demência,
Lua dos loucos, loucos estão!
Vara, noctâmbula aparição!
Quantos, bebendo-te a refulgência
Quantos por isso, sol da demência,
Lua dos loucos, loucos estão!
Já reconhecestes na encantação rezada
pela moça o poema inesquecível. E na adolescente que se tenta fazer
bruxa daquele culto lunar, permiti que vos apresente a velha senhora de
hoje tentando desvendar os seu laços antigos com o poema e com o
altíssimo poeta.
...E assim fitando-a noites inteiras
Seu disco argênteo n'alma imprimi...
..........................................................
Seu disco argênteo n'alma imprimi...
..........................................................
Passei fitando-a noites inteiras,
Fitei-a tanto que enlouqueci!
Fitei-a tanto que enlouqueci!
E a menina fitava a lua, fitava,
esperando o transe, o rapto, o santo. Encandeava-se de lua, fechava os
olhos, sentia sob as pálpebras o disco branco
...seu disco argênteo n'alma imprimi...
Argênteo... noctâmbulos... euros... caçoilas... flux... - e a própria palavra-chave do poema - plenilúnio - a menina as procurara diligentemente no dicionário, aquelas dificuldades parnasianas, traduzira-as, tirara-as do rol incompreensível de “abracadabra”, “abre-te Sésamo”... Incorpora-as todas à sua posse da língua, sentia-se rica e rara.
Argênteo... noctâmbulos... euros... caçoilas... flux... - e a própria palavra-chave do poema - plenilúnio - a menina as procurara diligentemente no dicionário, aquelas dificuldades parnasianas, traduzira-as, tirara-as do rol incompreensível de “abracadabra”, “abre-te Sésamo”... Incorpora-as todas à sua posse da língua, sentia-se rica e rara.
A noite branca era fria e a menina se
envolvia toda no lençol, por sobre a camisola fina. E as cobertas
arrastadas atrás de si davam-lhe o desejo de saltar a janela, descer
pelo pátio claro onde, no areão vermelho, luziam chispas nas
malacachetas.
... há pó de estrelas pelas estradas...
e ir seguindo o rumo do perfume dos aguapés na várzea
e ir seguindo o rumo do perfume dos aguapés na várzea
...eu sigo às tontas, cego de luz...
......................................................
......................................................
...Por toda parte louco, arrastando,
O largo manto do meu luar...
O largo manto do meu luar...
Ficava assim até que cantasse o galo da
meia-noite - os galos cantam cedo em noites de lua cheia - e então
cerrava lentamente a janela e voltava à sua rede branca de varandas de
renda, onde dormia e sonhava, os olhos brancos de lua, redizendo o poema
até dormir com ele.
Foi essa a minha primeira e mais grave
intoxicação poética. Tive outras depois, mais amenas, já vacinada pela
leitura e pela experiência que aumentava.
O poema eu o descobrira por mim mesma,
num volume já gasto por outra geração de moças - minhas tias. Naquela
nossa casa onde se lia tanto, mas onde meu pai só gostava de Camões,
Castro Alves e Guerra Junqueiro, e minha mãe sofria uma incompreensível
falta de ouvido para os poetas - (o seu ídolo era Machado, mas na
prosa!) - Raimundo ficou sendo o meu poeta particular, o meu misterioso,
louco poeta particular.
Concentrei-me no plenilúnio. Acho que,
como eu, há pessoas de um só poema, de um só poeta. Poetas, para elas,
são como namorados, pode-se ter muitos, sucessivos, mas nunca muitos,
simultâneos. Anos e anos fiquei fiel a Raimundo, até que descobri Manuel
Bandeira e foi aquele alumbramento...
Depois - mas não estou aqui para vos
contar os meus amores poéticos e sim a ligação íntima com que, milênios
antes de sonhar com esta Casa e esta Cadeira, a menina-moça que eu era
já se sentia presa ao seu Fundador.
Fundador e Patrono. Um escolhido pelo
outro, o Patrono pelo Fundador. Alguns buscam o significado dessa
escolha na analogia do ofício, digamos oficial, de ambos, juízes um e
outro. (Circunstância que também a eles ligaria a quinta ocupante da
Cadeira nº 5, tão chegada a juízes, filha, neta, irmã de juiz que é; e
os ligaria igualmente ao quarto ocupante, o juiz maior de todos, já que
alcançou o Supremo)... mas isso são divagações.
Juízes os dois, seria por isso que
Raimundo escolheu como patrono o romancista Bernardo Guimarães? Bem,
talvez não fosse a toga propriamente o elemento de união, mas a maneira
de exercê-la, os contrastes entre a personalidade dos dois juízes,
suscitando a atração do pólo positivo pelo negativo. O Juiz Correia
veria no Juiz Guimarães aquilo tudo que ele não era, mas gostaria de
ser. O juiz escravo da lei, quase neuroticamente escrupuloso, quem sabe
sonhava em ser como o outro, o seu antípoda, boêmio irreverente que
desafiava autoridades, recebia partes tocando violão, dava despachos em
versos picarescos; meritíssimo dr. juiz municipal de Catalão Goiás, que -
o caso é célebre - ao assumir o cargo, apiedado da mísera situação dos
onze presos que esperavam julgamento na péssima enxovia local, convocou
imediatamente um júri e, em rito sumário e irregular, os fez “absolver
por unanimidade e libertar incontinenti”.
O tímido colega apreciaria com inveja o
confrade irreverente, desdenhoso de escândalos; e trai essa simpatia ao
escolher, como padrinho da sua Cadeira, dentro da constelação de grandes
nomes nacionais, precisamente aquele que seria o seu antípoda, símbolo
de todas as suas insubmissões sufocadas.
Naquele tempo de Bernardo Guimarães, era o Brasil uma espécie de província perdida, cuja capital se situava em Paris.
Sem propriamente renegar a pátria, o
brasileiro dado às letras sentia-se como uma espécie de cidadão da
Europa; se o corpo, o coração, prendiam-se aqui, o espírito pairava ao
pé da velha civilização, cuja seiva hauria, em cujas tradições se
alimentava.
Os que liam inglês eram byronianos; os
francófilos - a maioria - juravam por Lamartine, Chateaubriand e Victor
Hugo, deles tirando inspiração e modelo.
Bernardo Guimarães é verdade que tentou
agir em área própria, usando cenários brasileiros, personagens
brasileiros, discutindo problemas brasileiros. Mas não teve como fugir à
onda romântica que, dentro dos debates sociais, proclamava
obrigatoriamente a inocência dos humildes, defendia os fracos,
anatematizava os vilões.
E, assim mesmo, combatendo embora a
vergonha do cativeiro, ele não ousou enfrentar os tabus da época; fazia
restrições racistas, como, aliás, as faziam todos os outros adversários
da escravidão - piedosos, paternalistas, levados por sentimentos
caritativos - mas nada igualitários. Por exemplo, no seu mais famoso
romance A Escrava Isaura, escrito como libelo veemente contra a escravidão (e indiscutivelmente bastante superior ao célebre e lacrimogêneo Cabana do pai Tomás, de Mrs. Beecher Stowe),
Bernardo Guimarães não ousa apresentar na heroína uma moça negra, como
seria razoável. Razoável, talvez, mas inadmissível para o público de
senhores e sinhás a que se dirigia. Isaura é branca, pelo menos na
aparência, a sua pinta de sangue negro completamente disfarçada em
sinais de beleza.
Só um Castro Alves se atreveria a
celebrar o que modernamente chamamos a negritude; esse falava no negro
de igual para igual, proclamava os padrões de beleza negros:
Lá nas areias infindas
Das palmeiras no país
Nasceram crianças lindas
Viveram moças gentis...
Das palmeiras no país
Nasceram crianças lindas
Viveram moças gentis...
Para a sociedade brasileira de então,
filhos de negros não seriam jamais “crianças” - eram crias e moleques...
E o que dizer das “moças gentis”?
Mas Castro Alves foi um gênio, e gênios
não se bitolam por padrões correntes, por mais imperativos. E o corrente
eram os preconceitos que nem mesmo o nosso Bernardo Guimarães, embora
pessoalmente rebelde e provadamente compassivo, pôde, como romancista,
desafiar.
De Osvaldo Cruz, sucessor de Raimundo
Correia, diz-se que ele entrou nesta Casa em obediência ao critério de
convocação de expoentes, já que na sua admirável vocação de cientista
(ele próprio se dizia “um modesto homem de laboratório”), não teve tempo
para dedicar-se à obra literária.
Em verdade, ele entrou aqui como expoente - mas dentro de uma categoria muito rara - na especialíssima categoria de herói.
Há os heróis que matam - aqueles que eu
certa vez, num assomo de petulância juvenil, ousei chamar “os grandes
carniceiros da História” - Alexandre, César, Napoleão - e há os heróis
cuja luta não visa a morte, mas a vida dos homens; cujas batalhas são de
salvar, não de matar. São os heróis mais altos, cuja pura auréola os
deve colocar no círculo superior dos bem-aventurados, no Paraíso.
Osvaldo Cruz foi um desses heróis
angélicos; sua vida curta e generosa foi um só combate contra o inimigo
invisível, o infinitamente pequeno, imolador de homens. Seu terreno de
campanha o Brasil, sua arena especial a cidade do Rio de Janeiro, bela
sempre, então como agora, mas perigosa para quem nela vivia, mortífera
para quem nela chegava, com a febre amarela devorando uma cota
impressionante de vidas desde os primeiros bafejos do verão.
O que foi essa luta, outros, antes de
mim, nesta mesma tribuna, já a narraram superiormente; basta reler as
palavras de Afrânio Peixoto, ao receber Osvaldo na Academia.
E a briga do herói não era só contra a
peste, mas contra os interesses contrariados, a inveja, a ignorância;
meu Deus, há interesses contrariados até quando se trata da recuperação
de uma cidade, de um país!
Mas, purificado o Rio, a cidade de novo
aberta, liberada da sua permanente quarentena, Osvaldo Cruz se
transportou à Amazônia, numa cruzada contra a malária que dizimava os
operários construtores daquela estrada de ferro de terrível memória, a
Madeira-Mamoré. De passagem, ele expulsou a febre amarela da cidade de
Belém do Pará, porto de grande movimento das frotas internacionais.
O que ainda teria feito por nós esse
homem, se a morte não o derrubasse ainda em quase mocidade, aos 45 anos
de idade - dá um pouco de vertigem pensar.
Em todo o caso, Osvaldo conseguiu
comprimir em sua curta vida os desempenhos de muitas vidas, como se
tivesse pressa, como se adivinhasse que a contagem regressiva das suas
horas já começara, quatorze anos atrás, no momento em que ele assumiu,
sob o título despretensioso de Diretor-Geral da Saúde Pública, a
tremenda tarefa que o cobriu de glória.
Mestre Aloysio de Castro, sucessor de
Osvaldo Cruz, era um exemplar, já em segunda geração, de um muito
importante grupo de médicos, dos quais o “anjo” foi, sem dúvida, o seu
ilustre pai, o Dr. Francisco de Castro.
Extremavam-se esses doutores no cultivo
das belas-letras, no manuseio dos clássicos, no trato requintado do
idioma, num gosto parnasiano do termo raro, da construção preciosa. Nos
seus compêndios de medicina, a par do ensinamento meramente
profissional, está sempre visível a preocupação do autor em produzir
igualmente trabalho de fino lavor literário, graças à qual transcendiam
da sua condição original de manuais médicos e se colocavam entre as
obras de literatura propriamente dita.
Tinham eles o seu epígono não em outro
médico mas em Rui Barbosa - o padrão das formas clássicas revividas.
Haviam, aliás, herdado esse pendor dos grandes mestres da medicina
francesa do século passado, cujos requentes de prosa escrita eram
notórios - os Trousseuau, os Jaccoud, os Dieulafoy.
Guardo, do professor Aloysio de Castro,
uma lembrança bem de acordo com a aura meio romântica que o cercava.
Levou-me à sua casa a minha querida e saudosa Lota de Macedo Soares, a
acompanhá-la em postulado de já nem sei que cruzada artística em que
então se empenhava.
Apanhado de improviso - creio que Lota
era suficientemente íntima da casa para lá chegar assim - o mestre nos
recebeu, no seu salão, sentado ao piano, vestido num robe de cetim cor
de vinho. E, interrompendo docemente as veemências de Lota, quis saber
quem eu era, sorriu satisfeito ao se inteirar do meu ofício, e começou a
tocar um pouco, para me pôr à vontade, creio. Foi tudo extremamente
gentil e, para mim, inesquecível: o piano de cauda, sobre o qual havia
retratos em moldura de prata, o salão em penumbra e o amável cavalheiro
dedilhando delicadamente o prelúdio de Chopin.
Se houve, neste país, um homem de letras
a quem não se pudesse taxar de alienado, como é de gosto dizer-se
agora, ou de encerrar-se em torre de marfim, como no tempo em que ele
fez a sua opção na vida, será esse homem aquele cuja saudade ainda
choramos, de cuja Cadeira me acerco, apesar do direito que me dais, meio
receosa de ocupá-la.
Cândido Motta Filho. Numa vida que, em
termos humanos, pode considerar-se longa – quase oitenta anos - esse
paulista inquieto fez de tudo e tudo fez bem, quer no plano intelectual,
quer no político, quer no social. E se em todas essas atividades
saiu-se com singular felicidade, é que recebera de nascimento dotes
acumulados, sobressaindo entre eles aquela clara inteligência a par de
um largo e muito humano coração.
Acompanhando-o na sua rica biografia,
vemo-lo, mal saído da Faculdade de Direito, na posse do seu canudo de
bacharel, tratar logo de ir diversificando os seus interesses; e ei-lo
advogado, jornalista, político, professor.
E curioso é que, durante a vida inteira,
se manteve fiel a esse leque de vocações. Fiel, exímio e vitorioso: o
advogado e jurista chegando a Ministro do Supremo Tribunal Federal; o
jornalista que começara escrevendo uma coluna judiciária e
simultaneamente dirigindo a página de literatura da mesma folha,
prosseguindo jornalista e literato até os dias finais, morrendo como
membro da Academia Brasileira de Letras.
Político: o moço que se fizera eleger
juiz de paz do bairro paulistano de Santa Cecília, atingiu a presidência
do seu partido, o Partido Republicano. Note-se que, nesse ramo da
política, a sua fé de ofício bastaria para encher com lustro mais de uma
biografia.
Moço, foi auxiliar da cúpula do governo
quando os seus detinham o poder, foi deputado estadual constituinte.
Entre uma atividade e outra sentou praça nas hostes dos que fizeram a
revolução constitucionalista de 1932, opondo-se de armas na mão à
primeira fase da ditadura de Vargas.
Com o governo Dutra chegou a Ministro do
Trabalho. E no governo Café Filho ocupou outra pasta, esta bem
consentânea com os seus interesses e atividades mais autênticos – a
pasta da Educação e Cultura.
Professor, iniciou-se na carreira de
mestre no Patronato Agrícola do Estado; e, de escola em escola, alcançou
a cátedra de Direito Constitucional, na gloriosa Faculdade de Direito
de São Paulo.
Um outro apaixonado interesse de Cândido
Motta Filho foi o problema, ou antes, o drama do menor abandonado.
Aquele humano e grande coração em que falei acima muito cedo se voltou
para esse tema angustiante, manifestando-se quer em estudos muito
acurados, quer em ação direta. Na prática, envolveu-se de modo nada
platônico, tendo chegado a Diretor do Serviço de Proteção de Menores do
seu Estado.
Na teoria, além de vários escritos dispersos, publicados na imprensa, foi o autor de um livro importante, A defesa da infância contra o crime.
Mas não foi como jurista, nem como
sociólogo, nem como homem de Estado, nem como jornalista de longo
tirocínio - não foi por nenhum desses títulos exponenciais que Cândido
Motta Filho entrou nesta Casa. Títulos que sobejamente lhe garantiriam o
ingresso aqui – como a vários outros ilustres companheiros.
Cândido Motta Filho ocupou esta Cadeira
n& ordm; 5, na Casa de Machado de Assis, graças à sua essencial
condição de homem de letras, atividade que, a par das outras, exerceu
com fidelidade, constância e talento. Caracterizava-se como escritor,
além da lucidez e da originalidade do enfoque nos temas abordados, pela
exposição clara e bem informada, aliada à preocupação estética da forma.
E, circunstância singular, esse escritor
que se interessava indisfarçavelmente pelo dizer lapidar, pela boa
linhagem vernácula da sua escrita, formou entretanto no bando
iconoclasta da Semana de Arte Moderna, “representante da insubordinada
geração de 1922” no dizer de Cassiano Ricardo, sendo mesmo um dos seus
elementos mais atuantes, dentro do núcleo central do grupo, com voz na
imprensa diária.
Muito já se tem dito sobre a Semana de
Arte Moderna. Aqui desejamos apenas assinalar um aspecto curioso do
movimento, que funcionou com muito mais ruído e conseqüências a
posteriori; no momento da sua promoção, quase se reduziu às rodas
inquietas da intelligenzia da capital paulista.
É o próprio Cândido Motta quem nos
confessa a sua defasagem com a trilha revolucionária do movimento
modernista, quando diz que “não sabia o que significava, em 1922, o
modernismo, porque o movimento de renovação era feito com a cumplicidade
de muitos que nunca saíram das regras acadêmicas”.
Mas, modernista ou não, sua obra de
escritor não se interrompeu nunc; e, se a não podemos chamar de copiosa,
é surpreendentemente variada, confirmando a condição básica de
polígrafo que define o seu autor.
Ele fez biografias e comentários biográficos: a história da vida daquela fascinante personagem do Brasil da belle époque, que foi Eduardo Prado, teve em Cândido Motta Filho o seu biógrafo definitivo.
Os estudos sociais, a interpretação de
temas políticos receberam também a sua abordagem atenta, quer fosse a
obra de Alberto Torres, quer a tentativa de explicação de Rui Barbosa,
quer a singular mistura representada por O caminho das três agonias,
estudo interpretativo de três entidades tão diversas entre si: o duro e
fascinante homem de Estado que foi Feijó; o suposto maldito e na
realidade o menino pateticamente genial, Álvares de Azevedo; e os
mistérios do temperamento e vida da indecifrada esfinge do Cosme Velho -
aquele que é o deus desta Casa - Machado.
Na crítica literária, que cultivou desde
os verdes anos, através de uma ininterrupta atividade jornalística, e
onde operou mais na postura de apreciador diletamente que na do árbitro e
pontífice, temos o belo volume de anotações inteligentes, de
descobertas muito pessoais e avaliação equilibrada, que são as Notas de um constante leitor.
Mas se eu tivesse que marcar uma
preferência pessoal na obra de Cândido Motta Filho, indiscutivelmente me
inclinaria pelos seus dois livros de memórias. O primeiro, Contagem regressiva cujo título é um achado tão feliz que por si só já valeria um volume; o segundo, de publicação póstuma. Dias lidos e vividos. “Dias lidos”, em vez de “idos” apenas, não valendo como simples trocadilho, mas depoimento confessional de uma realidade.
Esses dois meio desordenados
depoimentos, escritos sem preocupação cronológica nem ligação formal de
episódios, neles está o retrato do homem, sua essência particular, seus
sentimentos íntimos em simbiose com as lembranças.
A própria seleção das memórias, o
espírito que preside à sua escolha, o que o memorialista conta e omite, o
que recorda e o que esquece - deliberada ou involuntariamente - dão com
largura para se fazer uma ideia da persona, da criatura, que nos é tão viva e às vezes adoravelmente ressuscitada pelas recordações.
Livros feitos sem método
preestabelecido, indo e vindo do menino ao homem, do velho ao rapaz, e
que nos revelam, de forma positiva e esclarecedora, o que seriam os
ideais humanos, as concepções filosóficas e sociais de Cândido Motta
Filho - a par de suas preferências artísticas, literárias, estéticas. E
tem-se ali igualmente uma galeria preciosa de contemporâneos seus,
retratos feitos às vezes num traço único - grandes figuras do Brasil,
flagrantes de personalidades mundiais com quem o narrador teve contacto.
Na verdade, pode-se dizer que Cândido
Motta Filho não se conta muito, conta mais os outros; e é através dos
outros que com freqüência se revela. Até mesmo nas lembranças de
infância, a gente enxerga o mundo do seu tempo através dos olhos do
menino; e é essa visão do mundo, nos voltando em ricochete, que traduz e
explica o garotinho tímido, canhoto e de frágil saúde, perseguido pela
solicitude inquieta dos seus, sempre receosos de que o garoto “não
vingasse”.
Vingaria sim, vingaria magnificamente,
conforme o testemunho de sua bela vida, que afinal logrou alcançar quase
oito décadas. Vingaria; vingou.
Fui conhecer melhor Cândido Motta Filho
depois que ele, aposentado do Supremo, deixou Brasília e veio se fixar
no Rio. Nosso ponto de encontro era a sala do escritório de nosso irmão
José Olympio, editor de nós ambos. Motta, sempre discreto, falava e
sorria - aliás mais sorria que falava, quando a roda era grande. Nos
grupos de dois e três é que se expandia, brincava, contava casos e
defendia pontos de vista.
Certa vez, eu saía apressada de um dos
almoços na Editora para a sessão do Conselho Federal de Cultura, que
começa às duas horas, e o Ministro Motta filho ofereceu levar-me no seu
carro. Dávamos a volta pelo Parque do Flamengo, quando veio à nossa
conversa o assunto netos, meus e dele, todos maravilhosos, claro. E de
repente ele se pôs a explicar, meio complicado, a vocação profissional
do seu neto Nélson, o Nelsinho.
- Adora música, principalmente a popular, desde pequeno, é queda irresistível...
Tive a impressão de que, de certa
maneira, o avô justificava o rapaz ante os possíveis preconceitos
elitistas da senhora literata. E protestei com veemência:
- Mas eu sou fã do Nelsinho! Fã de firma
reconhecida! Tenho os discos com as músicas, não perco a coluna dele no
jornal, e sempre que posso o vejo na TV! É um doutor em música popular.
E, além disso, Ministro, ele é lindo!
O Ministro visivelmente inchou o peito
naquele orgulho inocente que só os avós conhecem; os seus olhos luziram,
seu sorriso clareou mais, e ele acabou concordando, beatífico:
- Sim, é lindo!
E a concordância em torno daquele neto e
daquele adjetivo selou uma cumplicidade afetuosa entre nós. Daí por
diante, mal me via, ele abria o sorriso, adiantava-se para me apertar a
mão e, assim que apanhávamos um local para conversar sossegados, íamos
discutir, conspiratoriamente, não de inquietações políticas ou novidades
das letras - mas, doce e consoladamente, de netos.
4/11/1977
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